Primeiro copio um texto de
Krishnamurti e em seguida proponho algumas questões.
Eis o texto:
Jiddu
Krishnamurti - No Curso da Existência
"Pergunta: Você acredita em Deus?
Krishnamurti: O importante é descobrir por que você busca Deus; pois quando você
está feliz ou está apaixonado, não busca amor, felicidade. Então você não
acredita no amor – você é amor. Apenas quando não existe alegria, felicidade,
você tenta buscá-la. Você está buscando Deus porque diz a si mesmo “Eu não posso
compreender esta vida, com sua miséria, injustiça, com suas explorações e
crueldades, com seus amores que mudam e suas constantes incertezas. Se eu puder
compreender a realidade que é Deus, então todas essas coisas passarão”. Para um
homem na prisão, a liberdade só pode existir num voo imaginativo. Sua busca pela
realidade, por Deus, não é nada mais que fuga do fato. Se você começar a se
libertar da causa do sofrimento, libertar a mente das brutalidades da ambição
pessoal e do sucesso, da ânsia por segurança individual, então há verdade,
realidade. Então você não perguntará ao outro se existe Deus. A busca por Deus,
para a grande maioria das pessoas, é só uma fuga do conflito, sofrimento. Elas
chamam esta fuga de religião, a busca da eternidade, mas o que estão de fato
buscando é simplesmente uma droga para fazê-las adormecer.
A causa fundamental
do sofrimento humano é seu egoísmo, expressando-se de várias formas,
essencialmente na sua busca por segurança através da imortalidade,
possessividade e autoridade. Quando a mente estiver livre destas causas que
criam conflito, então você compreenderá, sem crenças, aquilo que é imensurável,
aquilo que é realidade. Uma mente carregada com crença, com preconceito, uma
mente que é preparada, não pode descobrir o desconhecido. A mente deve estar
inteiramente despida, sem qualquer apoio, sem qualquer desejo ou esperança. Aí
está a realidade, que não pode ser medida por palavras. Assim, não busque
inutilmente por aquilo que é, mas descubra os impedimentos, os obstáculos que
impedem a mente de perceber a verdade. Quando a mente está criativamente vazia
existe o imensurável. "
***
Eis minhas questões:
- Antes de perguntar sobre ‘deus’
que tal começarmos perguntando sobre nós?
1- Você pode afirmar sempre - em um estado
permanente de ser: Eu sou amor?
2- A felicidade plena - perene - existe na
manifestação humana atual?
3- É essa imaginação persistente uma quimera
inconsequente e sem nenhuma possibilidade de realização, pois que não há nada a
buscar fora dessa realidade humana, ou há sim uma essência fundamental e,
portanto, um sentido nessa busca?
4- E se o há, pode ser nomeado?
5- Por que você,
assim como o resto da natureza, simplesmente não vive sem questionar a essência
e o sentido da vida? O que tem o ser humano que o faz não só estar inadequado e
sofredor em relação a vida, mas observar e refletir sobre isso, questionar isso
e não se conformar com isso?
6- Se há do que se libertar (como esta no texto de
K) tal implica em duas coisas: ¹Você está preso – portanto tal é uma condição
circunstancial e não ontológica; ²Se está preso é porque existe algo fora dessa prisão e por mais forte que sejam as suas grades a pretensão de libertação é
legítima e o lugar - a liberdade – ‘lá fora’ é real.
7- O fato de suas
ego-soluções para a essa questão serem desviantes e ainda mais aprisionadoras
implica em que a essência da questão fundamental que o move (embora a perceba e
formule inadequadamente) seja ilegítima?
8- É o egoísmo humano inerente à sua
natureza fundamental ou é simplesmente uma grave e profunda patologia espiritual
que o contaminou e, assim sendo, há uma condição humana sã subjacente a essa ego-patologia?
***
K: “Quando a mente estiver livre destas causas que criam
conflito, então você compreenderá...”
Concordo integralmente, mas...
- Como
fazer para me tornar livre? Ou, mais precisamente: como a livre plenitude
fundamental pode se manifestar através de mim?
- Quem afastará o Ego? O próprio
Ego? Um grupo de Egos?
- Há na manifestação que eu represento uma outra consciência latente, não
egóica, que pode ser a que liberta o sistema espiritual humano?
- Mesmo essa
outra, supondo que haja, pode fazê-lo por si só visto que está embrenhada numa
força egóica prevalente?
- Precisará necessariamente de ajuda?
- Quem pode
ajuda-la?
***
CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS
Pergunta de um leitor: Quem vai buscar? E porque quer buscar? Não é essa busca
outra armadilha do ego? São questões que embora sem respostas, elas precisam
serem feitas. A questão é: quem a está fazendo e porquê?
Minha resposta: As perguntas que propus tem o objetivo de abrir a reflexão sobre o
dualismo que se encontra por exemplo na gnósis cristã valentiana e em muitas
outras perspectivas espirituais. Espero que cada questão seja meditada bem de vagar, profunda e socraticamente pois se já entrarmos nela armados com nossas
percepções assumidas, certamente egóicas, serão de todo inúteis.
Era minha minha intenção que as perguntas propostas pudessem ser desvendadas a partir das reflexões que fiz.
Existe alguém mais que o Ego nessa manifestação embora
certamente o Ego a distorça porque no seu estado de ser atual ele tem destaque e
prevalência. Mas este alguém - que está também aí - aprisionado, mas clamante - é de outra natureza, da natureza pura original.
Assim o dualismo
gnóstico propõe o cenário para essa investigação: duas ordens de natureza - a
natureza original pura e a natureza atual decaída na dualidade instável e sempre
mortal. É certo que o Ego manifestando essa natureza dual, embora muitas vezes
sob o impulso genuíno do outro, sempre a distorce.
Quando vemos, por exemplo, K
dialogando numa sala com dois ou três teríamos que assumir que ali (fora K) não
estariam dois ou três, mas sim quatro ou seis.
Portanto ao colocar o foco no Ego entendo que se está, monisticamente, descartando o genuíno impulso do outro pela
Verdade. Esse genuíno impulso, embora passe e se distorça pelo Ego que lhe está
à frente, deve ser destilado para que se compreenda genuinamente qual é o
legítimo desejo fundamental de “libertação”, que está na essência dos diálogos
em questão.
Penso que as importantes proposições krishnamurtianas são
oportunamente demolidoras pois desmascaram as artimanhas do Ego ao tentar
cooptar as genuínas pretensões do outro, do “filho pródigo”. Mas, por outro
lado, por não colocar este outro nas suas reflexões (embora muitas vezes o
subentenda - como por exemplo em ocasiões em que se refere a si mesmo como
‘aquele menino esquisito de mente vazia’) o ensinamento de K empaca e fica
sempre inconclusivo.
Paulo Azambuja